
TRA(N)ÇADOS

Tens razão!... Acendi uma nova luz cá em casa. Ou antes, a luz é a que já havia e está sobre o mesmo apoio de sempre. Mas puxei-a mais para o centro. Agora que fazes reparo, apercebo-me de que sim, há uma luz mais ao centro, esta noite. É que olhei esta banqueta forrada a cisal das gáveas e me lembrei de outros artefactos!... Senti uma súbita nostalgia do mundo entrançado dos indígenas, onde tudo é essa arte sentada na paciência, esse vai e vem dos dedos no passajar das dádivas da Floresta. Lembrei-me das cestas e paneiros tecidos de fiapos colhidos às árvores, misteriosa tecitura de esfarrapadas tiras capaz de suster na leveza todo o peso a carregar, de conter na sua trança os mais finos grãos de farinha sem que nenhum se derrame no desperdício do chão. Lembrei-me de como a atenção é a única chave verdadeiramente eficaz para decifrar as diferentes geometrias de cada tribo. Voltei a sentar-me junto da gente dos braços Tupi, quieta e quase muda, a olhar o vermelho e o negro arrancarem-se aos frutos da mata e vir tingir o cipó virgem. E então talvez tenha prestado mais atenção à velha banqueta empurrada para um canto da casa. Talvez tenha fechado os olhos e imaginado que na Casa da Colina de Lisboa crescia um tecto de sapé e que de novo um cântico de nocturno amazónico chegava com a Lua. Abri mais janelas e puxei a banqueta para o centro do tapete. Para mais perto. Para onde possa olhar para ela. E gostei de a tropeçar no meu ir e vir doméstico. Gostei que cada movimento de travessia do espaço me fizesse contorná-la, ladeá-la, rodeá-la, tê-la por centro neste raio que descrevo a cada vez que me desloco dentro da circunferência da casa: na outra margem Floresta.
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