Amazona

TORNEIRAS, TELEFONES, ASAS, TOQUES E AVIÕES

Fico eu a pensar no estranho caso que me faz olhar duas torneiras de segurança e ver claramente um telefone preto preso à parede!... Um telefone desses que antigamente precisavam da providencial assistência de uma telefonista para completar a ligação. Sempre me interessaram os erros da percepção, é bem verdade!... Sempre se impacientou o mundo com esta apologia que concedo ao erro. Sempre o incomodou que pudesse passar horas a olhar a aparente fissura do fémur intacto quando mergulhado na água da banheira... Na verdade, posso perder horas assim: a contemplar perplexidades e confesso que elas me parecem quase sempre bem mais interessantes que o implacável avanço dos ponteiros do relógio sobre as programadas rotinas do mundo. Queria eu saber disso mesmo que engana o olho, mas só de vez em quando!... Queria eu explicar ao incomodado mundo em meu redor do extraordinário achado que seria, se alguma vez conseguissemos chegar a esse princípio por meio do qual certas vezes o olho nos atraiçoa a vista!... Aparo-lhe a impaciência irritada e tenho uma certa vontade de perguntar se acaso não acharia alguma utilidade prática no desvendar do desconcertante mistério que, ora faz do olho o nosso mais fiável instrumento de avaliação da realidade, ora o nosso maior traidor no julgamento do que nos fica em entorno?!... Pudessemos nós apossar-nos do segredo e proceder à destrinça!... Saber exactamente quando confiar e quando desconfiar dos zumbidos da pupila!...

(...)

Devo ter adormecido em aporia porque tenho a sensação de despertar no meio da escala, um pouco antes do peso do aço se arrastar no alcatrão da pista, mas já com o motor a roncar ao alçar do vôo. Volta a mesma imagem a assaltar-me um assombro que não sei dizer exactamente de onde me chega. Fixo-me no telefone que tão claramente descortinei sem que sequer lá estivesse e na muito pouca probabilidade de que alguma vez lá tenha estado. Fico assim uns segundos e depois dispara-me a ideia para o som do toque... O toque que também lá não estava e que nada faz prever que ainda possa vir a estar...! E, então, dou comigo a perguntar-me sobre o que será pior: se o telefone tocar sempre do mesmo lado da linha ou se não tocar de todo - nem de um, nem de outro lado. Ser só silêncio. Só um hiato por tempo a determinar, como um sono adormecido em aporia... até o ronco do motor voltar a fazer-se ouvir... até ao prosseguir em vôo quando cumprida a escala... quando a semana entrar e outra vez se esvaziar a casa. E sigo em moderada iluminação de bordo, a mastigar ao de leve a última dúvida que se me levantou: porque é que nunca toca por igual, o telefone, dos dois lados da linha?!... Talvez as vozes sejam como os aviões e precisem de um corredor que as previna ao atropelo!... Talvez sejam as vozes como as asas dos aviões: frágeis membranas expostas que um golpe mais forte desequilibra... ! Talvez precisem desse corredor de segurança como de uma torneira maciça, a fixar-lhes os dois bojões à parede numa equidistante simetria de igualdades. Até voltarem a jorrar. Ambas. Misturadas. A par. Com o recomeço da semana.

Etiquetas: Amazona BLG